Fotos: Gui Santana
(Texto escrito em novembro de 2018)
Rodeada de restaurantes chineses, a Praça da Sinuca se esconde no segundo andar de uma Rua da Glória chuvosa na tarde da última quarta-feira de outubro de 2018. O salão, que fica na divisa entre a Sé e a Liberdade, não está no mais agitado dos dias. As bolas do joguinho estão mudas, os tacos descansam equilibrados nas paredes, as seis mesas de madeira maciça parecem, assim como todo o cenário, viver uma letargia. E no fundo do salão, igualmente silencioso, um senhor octogenário observa sentado toda a movimentação da inércia. Ele parece parte do cenário. Ele é parte do cenário.
“Ele se entedia de ficar em casa e vem pra cá”, conta Tânia Xavier, que vez ou outra trabalha no local e em tempo integral é cuidadora de Seu Walfrido Rodrigues dos Santos. Eles saem, numa rotina quase diária, da modesta residência de fachada em tom de rosa com um vaso de espadas de São Jorge e outras pequenas plantas no bairro da Quarta Parada, na zona leste, embarcam no ônibus na Rua Siqueira de Bueno e seguem viagem por cerca de 40 minutos até a Praça João Mendes, no centro. Ele chega ao local, escolhe uma cadeira e por lá fica até tarde da noite.
Seu Walfrido é pequeno. Os cabelos, totalmente brancos, se organizam na careca clássica — daquelas que preenchem apenas a parte de trás e dos lados da cabeça. Sua calça jeans larga, seu tênis Mizuno branco e sua blusa vermelha e preta (uma homenagem sem distintivo ao seu Flamengo) quase disfarçam seus 89 anos, a maioria deles vividos ali nas beiradas do pano verde.
Os mais antigos que acompanhavam os bambambãs da sinuca talvez não saibam quem é Walfrido Rodrigues dos Santos, mas o seu apelido é um dos patrimônios do esporte no Brasil. Carne Frita era um dos maiores jogadores do país, taco forte em qualquer partida. Jogador que fez fama com seu talento. “Eu fui um gênio”, ele diz. E é difícil discordar.
Quem corroborava deste discurso era o falecido escritor paulista João Antônio. Em sua obra mais simbólica, o conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963, ele trama o encontro dos personagens fictícios com o sinuqueiro e define assim seu tino para o joguinho. “Havia nomes e famas que corriam. Muitos, muitos. Praça, Paraná, Detefom, Estilingue, Lincoln, Mãozinha... Eram artistas do pano verde. Mas Frita... quem entendia de sinuca era ele”. Frita fala sobre seu stalker literário. “Ele só escolhia a mim. Eu falava. ‘Pô, procura outro aí’.”
Uma pequena amostra deste entendimento, que ainda não se perdeu no tempo graças ao Youtube, é a cena do filme O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla, lançado em 1977 e inspirado no conto de João Antônio. Na telona, Carne Frita dá uma aula. Em menos de dois minutos ele mata 10 bolas. Quatro no canto superior direito, três no canto inferior direito e outras três nas bocas do meio.
O apelido que carrega até hoje veio ainda criança, aos oito anos, em sua terra natal, a pequena Propriá, cidade sergipana banhada pelo Rio São Francisco. Ele conta que o epíteto veio da troça de um palhaço de perna de pau. “Ele perguntou qual era o meu nome. Eu respondi ‘Walfrido’ e ele deve ter entendido ‘Carne Frita’. Eu passava, os colegas ficavam me chamando pelo apelido, eu xingava e ficou”. Como não tinha tamanho e nem idade para a sinuca, Walfrido improvisou sua própria jogatina. Com galhos e bolinhas de gude fez uma mesa que alugava para a molecada da cidade. E ali, naquele universo boêmio em miniatura, nasceu uma lenda.
Com um jogo consolidado, e ainda menos de 18 anos, seguiu para a Aracaju, fez fama em Salvador e desembarcou no Rio de Janeiro. Ele se gaba. “Todo mundo me conhece no Rio, no salão de bilhar”. Carne Frita chegou à São Paulo em 1951 e fincou raízes na capital paulista, tanto na sinuca quanto na vida. Na década de 60 se estabeleceu como auxiliar de oficial no Tribunal da Justiça do Estado de São Paulo (cargo com o qual se aposentou), fez filhos — que preferiu não mencionar a quantidade — e tocou a vida.
Mas qual é o segredo deste homem pequenino e grisalho enfurnado no fundo de um salão de bilhar? Com segurança Frita explica. “Eu defendo bem” e fala de sua capacidade de deixar a bola branca sempre bem posicionada. Ele se levanta devagarinho, ajeita a calça que insiste em se manter fora do lugar e dá uma breve aula prática. “A minha branca dificilmente para aqui”, fala, encostando a bola no canto da mesa. Seu controle da bola branca era quase mágico e sua precisão para encaçapar as bolinhas era algo semelhante a genial. Léo Batista — aquele que até hoje está no jornalismo esportivo da Globo — certa feita definiu o jogo de Seu Walfrido da seguinte maneira: “a sinuca do Carne Frita é falta de adversário.”
O sinuqueiro viveu a fama, foi celebrado e compartilhou, segundo ele, a amizade de nomes como Chico Anysio, Paulinho da Viola e Toquinho. Ele reinou. Ganhou muitas partidas, jogou em mesas que valiam muito dinheiro. Em uma partida, recorda, faturou o suficiente para comprar um apartamento e ainda sobrava uma boa grana. O dinheiro veio, mas a abundância se foi com parte do talento.
A maior desgraça de sua vida aconteceu no dia 13 de junho de 1974 e em suas conversas até o fim da vida, como num mantra, ele resgata a cena mais cruel de sua memória com precisão. Segundo Frita, um policial com o irônico nome de Nelson Gonçalves e uma corpulenta massa física de peso pesado acertou um direto em seu olho esquerdo e, com o auxílio de um soco-inglês, o fez perder parte da visão. Ele afirma que isso acabou com suas possibilidades profissionais e por vezes repete apontando para a região agredida. “Aqui é tudo remendado, essa vista aqui tá fodida” e emenda “eu sinto dor de cabeça, parece que levei a pancada agora”, acrescenta ainda. “Ele acabou com a minha vida” e finaliza: “Se eu tenho um revólver, eu mato ele”. Menos de uma hora depois, ele volta ao assunto com as frases sendo praticamente repetidas.
Ainda de pé, ele seleciona um instrumento na taqueira e em uma breve exibição puxa a bola branca com o bastão para o centro da mesa. “Esse taco não presta.”
Como nos tempos em que fazia a vida em volta de uma mesa, se pavoa com a atenção que recebe de sua cuidadora. Ele abaixa o corpo, faz a mira, dá uma carimbada certeira na bola branca que soca a bola azul para o fundo da caçapa do meio. A bola branca volta lentamente ao centro, pronta para a próxima. Ele guarda o taco, sorri e volta vagarosamente para a cadeira que lhe conforta em vários dias da semana. Carne Frita não joga com frequência, mas não nega que ali, em meio ao pó de giz, é que se sente em casa. E mostra, numa breve aula, que quem entende de sinuca ainda é ele.
Bastidores
Entrevistei o Seu Walfrido duas vezes. A primeira em 2015, para a finada Vice Brasil, e a segunda no fim de 2018 para uma publicação que nunca tinha ido ao ar até hoje.
A primeira vez que li o nome do Carne Frita foi no livro do João Antônio. Lembro de ver, bem novo, o Rui Chapéu na TV e alguns outros jogadores do paninho pela Avenida Silva Bueno, no Ipiranga. Mas quando cheguei ao Frita, que também virou tema de uma canção do Thiago França, no disco Malagueta, Perus e Bacanaço, eu pirei.
Para a primeira pauta, em 2015, sugeri o personagem para o André Maleronka, que comandava a gangue da Vice naquela época, e me embrenhei pela Quarta Parada, na zona leste de São Paulo. Consegui falar, se não me engano, na Federação Paulista de Sinuca e Bilhar e descobri que o Seu Walfrido costumava frequentar um salão com mesas cansadas ali na Vila Alpina. A sensação era de voltar ao conto do João Antônio em busca dos famosos joguinhos do bairro.
Numa tarde qualquer da semana, bati no salão, que ficava no segundo andar depois de uma escada estreita e comprida. Uma mulher me disse que ele ia lá praticamente todo dia e costumava ficar sentado, exatamente como na sinuca da Liberdade anos depois. Deu também o caminho das pedras para encontrá-lo.
Saí pelas ruas do bairro até chegar a uma estreita via ainda não atingida pela especulação imobiliária. Toquei uma campainha e nada, perguntei para o dono do botequim e nenhuma resposta e assim foi em pelo menos cinco tentativas. Já quase desistindo, vi um senhor saindo com o carro da garagem e perguntei pelo Seu Walfrido. Ele me apontou a casa da frente.
Toquei, e um senhor pequeno e assustado me atendeu. Expliquei para ele o motivo de procurá-lo. Ele estranhou, demorou a ir ao portão, mas uma hora me disse que eu poderia voltar em outro momento. Assim foi feito. Voltei dias depois com o Gui Santana, que gentilmente cedeu as fotos que ilustram este texto, e o resto vocês podem ler aqui e na reportagem de 2015 da Vice.
Seu Walfrido morreu no dia 29 de outubro de 2019, dois dias depois de completar 90 anos. Ele, que já tinha a saúde debilitada há alguns anos, teve falência múltipla dos órgãos. Foi cremado na Vila Alpina, o sonho dourado dos três malandros do João Antônio: Malagueta, Perus e Bacanaço.
A conversa que tivemos em 2018 e o texto acima nunca publicado talvez sejam o último registro a seu respeito.